Miguel Gomes

As Mil e Uma Noites

Miguel Gomes

O realizador português Miguel Gomes estreia, em agosto, o primeiro volume de As Mil e Uma Noites, uma longa-metragem dividida em três partes. A obra, vencedora do Prémio de Melhor Filme no Festival de Cinema de Sidney, não tem como pano de fundo o Médio Oriente e a Ásia, mas sim Portugal, durante o período de assistência financeira da troika.

No volume 1 – O Inquieto, a principal personagem, Xerazade, conta ao Rei que há maldições que se abatem sobre um país europeu, onde o desemprego se propaga e os homens de poder aguardam pela coleta de impostos para pagar a um certo feiticeiro. No segundo, O Desolado, e no terceiro, O Encantado, com estreias previstas para os próximos meses, Xerazade continua a contar histórias tristes de um Portugal delirante.

Falámos com Miguel Gomes, e ficámos a saber mais sobre este novo filme que tem cerca de seis horas no total.

Porquê a escolha de As Mil e Uma Noites como estrutura para realizar o filme?

O livro As Mil e Uma Noites sempre me atraiu pelo caráter selvagem e muito rock’n’roll da ficção. Muitas vezes é violento e selvagem. Comecei a sentir nas histórias que ia lendo nos jornais, nas histórias que iam entrado em minha casa pela televisão, que essa dimensão selvagem começava a existir na própria atualidade que era relatada pelos media em Portugal. O que faz sentido, porque, em momentos mais extremos em que a conjuntura é dramática, todo esse lado de pulsões se torna mais visível. A realidade ou fica mais violenta, ou mais absurda, ou mais triste… Portanto achei que os contos que Xerazade contava ao rei, nas Mil e Uma Noites, tinham um lado delirante, estabelecendo um ponto de contacto com o que estava a ser vivido na sociedade portuguesa. Achei que podia fazer um filme em que a ficção tentava contar o real através do seu delírio, mas também relatar uma realidade que estava, ela própria, a delirar.

No início do filme estabelece um paralelo entre o realizador e Xerazade. Considera que os realizadores, assim como Xerazade têm uma urgência em contar histórias?

Acho que não se pode renunciar a esta função de contar histórias. Às vezes existe a ideia, com a qual não me identifico, que quando as coisas começam a ficar muito difíceis deixamos de ter autorização de contar com a ficção, porque a realidade é demasiado forte e portanto temos que ficar apenas presos a ela. Eu não concordo, e acho que Xerazade também não ia concordar, apesar de ela nunca ter existido e ser uma personagem do livro, porque para ela contar histórias era uma questão de vida ou morte. Contar histórias, mesmo a partir de uma realidade complicada, é poder continuar a transmitir, é uma coisa importante para alguém do nosso tempo e para gerações futuras. Essa ideia de contar histórias, como Xerazade fez com o rei e os pais fazem com os filhos, é importante. A ideia de transmitir algo sobre o mundo através da capacidade que a ficção tem.

O filme alterna momentos ficcionais e outros documentais. Mas mesmo os momentos documentais parecem ensaiados, remetem para a ficção. Qual é a intenção? E porquê essa divisão se tudo é ficção?

Existe uma componente real em muito daquilo que parece a ficção mais surrealista. Quando mostro o filme a espetadores fora de Portugal perguntam de onde me surgiu a ideia dos Vistos Gold; ou como é que inventei os sorteios de automóveis de luxo feitos pela Direção Geral de Contribuição e Impostos. Respondo que não são invenções. Logo, na ficção mais delirante existe, muitas vezes, uma base real e naquilo que é documental existe também um trabalho de ficção. Para mim, o que é importante é o diálogo entre as duas coisas, entre o real e o imaginário, e como esse diálogo pode existir sem que um traía o outro. A traição acontece quando a ficção tenta fingir que é a realidade. Isso incomoda-me porque é uma coisa que está muito em uso. Sinto-me insultado quando essa ficção tenta passar pelo real… A isso chama-se mentira.

As suas histórias documentais têm sempre um lado metafórico. Como vê a relação entre realidade e metáfora? Através da metáfora pretende transcender a realidade?

É uma maneira de fazer expandir a realidade, através do recurso a uma dimensão quase mitológica. Inventar uma mitologia para um tempo, com personagens, criaturas, histórias onde a realidade ecoe. Como os gregos inventaram os seus Deuses, que no fundo refletiam a realidade da sociedade onde viviam. O cinema não pode contentar-se apenas em captar a realidade, é preciso trabalhá-la, inventar uma dimensão que exista para além dela. Sei que a baleia que rebenta no filme talvez seja uma metáfora, só não sei de quê. A baleia será Portugal? Será o coração daquele sindicalista? Não faço ideia, mas sei que existe essa dimensão. Num certo sentido aquela baleia diz qualquer coisa sobre aquele personagem e sobre o universo em que está inserido. Sou muito intuitivo, nunca penso: ‘esta coisa vai representar isto ou aquilo’. Isso é muito racional. Prefiro fazer ao contrário: há determinados elementos que me fascinam e quero pô-los no filme porque têm uma dimensão qualquer, podem significar alguma coisa, mas não sei o que podem significar. Não sei se isso me desqualifica como realizador…

Ao longo dos três volumes como foram selecionadas as histórias documentais?

Tinha consciência que a diversidade de histórias seria aquilo que faria o filme mais rico e mais justo. Com uma história e com um conjunto de personagens arriscávamo-nos a cristalizar um olhar sobre Portugal, portanto, era importante que em cada história houvesse diferenças sobre como se contam histórias e que esta Xerazade arranjasse sempre maneiras diferentes de as contar, que não existisse um olhar único sobre Portugal, que cada nova história pudesse corrigir coisas da história anterior. A complexidade do filme teria a ver com essa diversidade.

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No último volume, O Encantado, há uma história que predomina: a da comunidade de passarinheiros. Qual a sua relevância ?

A história dos pássaros e dos passarinheiros foi uma oportunidade que descobri para fazer uma coisa que me interessava muito no filme: ter dois mundos ao mesmo tempo e muito diferentes. O mundo que nós comungamos, o mundo real, material, ou seja, filmar um conjunto de pessoas que são proletários, que nasceram em bairros de lata, em Lisboa, e que através das memórias e da sua vida me dão azo a fazer um retrato de uma certa classe social que, nas últimas décadas, existe neste país. Por outro lado, quis mostra a ocupação desses homens numa atividade que eu desconhecia, e que parecia paralela ao nosso mundo. Um conjunto de homens que ensinam pássaros a cantar tem uma dimensão poética, que é paralela àquilo que identificamos como sendo o nosso mundo quotidiano. Senti que estava a filmar duas realidades ao mesmo tempo e sem esforço. Captava uma realidade paralela, e simultaneamente registava como se vive em Portugal nesta altura e nestes bairros.

Considera que a presença da troika e o programa de ajuda financeira a Portugal são, tal como As Mil e Uma Noites, uma história por fechar?

A primeira vez que ouvi falar da troika não estava em Portugal, estava em Moçambique a filmar o Tabu. Alguns elementos da minha equipa que iam para Moçambique cruzaram-se no aeroporto com elementos dessa troika, que vinham pela primeira vez a Portugal. Quando chegaram a Moçambique, eu estava muito isolado, praticamente no meio da selva e eles disseram-me que se tinham cruzado com a troika. Eu perguntei: mas quem é a troika? Só o nome parecia ficção. As Mil e Uma Noites do título não são só As Mil e Uma Noites do livro, são também As Mil Uma Noites dessa crise, ou os dias intermináveis destes tempos de crise. Dias que, quando comecei a filmar, já tinham começado e que, depois de terminado o filme prometem, infelizmente, continuar.