Rui Lopes Graça

'Tempestades' é a mais recente criação do coreógrafo para a CNB

Rui Lopes Graça

Inspirando-se na corrente protorromântica sturm und drang (tempestade e ímpeto) que arrebatou a Europa no último terço do século XVIII, e que teve em Goethe e Haydn os seus expoentes máximos, o coreógrafo Rui Lopes Graça criou Tempestades. O espetáculo, em estreia a 17 de outubro no Teatro Camões, marca o reencontro com o maestro Pedro Carneiro, quase 10 anos depois do aclamado Sopro, também para a Companhia Nacional de Bailado (CNB).

Em tempos como os que vivemos, porquê escolher como tema para esta nova criação um movimento tão vincadamente romântico?

O projeto começou por nascer de um desafio da Luísa Taveira [diretora artística da CNB] para criar uma peça com orquestra, que envolvesse músicos e bailarinos de uma forma não convencional, ou seja, não ter uns no palco e outros no fosso de orquestra. Com o Pedro Carneiro, e após muitas conversas, chegámos a este movimento e às ideias que ele preconiza. Apesar de pertencer a uma época e a um contexto muito específico, a essência do sturmismo ultrapassa a questão da emoção versus razão e a oposição ao classicismo vigente no século XVIII. Este movimento está profundamente ligado à essência do ser humano, do homem em crise por apego à forma. A forma é uma recorrência humana do ser gente, que cada um de nós assume para se sentir mais seguro no mundo. Para nos libertarmos, precisamos de renunciar às formas existentes e criar outras. É essa a dinâmica do acontecer, logo todos os tempos são tempos para abordar esta temática.

Mas, aos olhos do sturmismo, essa libertação das formas que conduz a novas formas é deveras emocional…

Por isso optei por tratar a peça a partir das emoções básicas dos seres humanos, estabelecendo quatro ciclos: o do medo, o da alegria, o da tristeza e o da raiva. Através destas emoções criei uma forma coreográfica que se destrói a partir de cada uma dessas mesmas emoções. E, ao criar uma nova forma, estabelece-se um ciclo contínuo de destruição e criação.

Pedro Carneiro foi o parceiro ideal para um projeto como este?

O Pedro é um músico especialmente intuitivo e criativo. Neste espetáculo, a partir das sinfonias de Haydn, sobretudo a partir das sinfonias n.º 44 e reminiscências da 45, temos elementos de uma enorme capacidade dramatúrgica que o Pedro reajusta e recompõe de um modo extraordinário. Sinto que em Tempestades estamos a viver um momento único de plenitude criativa.

Independentemente de Haydn ser o grande compositor deste movimento, a sua música foi uma escolha inteiramente consensual?

Absolutamente. Trata-se do compositor mais representativo do sturm und drang, foi um visionário e alguém que mudou a história da música. As suas composições têm a marca do movimento…

Como é trabalhar a partir da sua música?

O coreografo não precisa de trabalhar a música tal qual aquilo que ela nos transmite. O desafio é, precisamente, não cair nessa armadilha. Por natureza, uso a música mais como ambiente do que como suporte para criar movimento. Aliás, todo o material coreográfico de Tempestades foi criado sem música para evitar contaminação. Os bailarinos trabalharam quase sempre no silêncio, ou, pontualmente, com música que nada tem a ver com aquela que vamos usar no espetáculo.

Para além da CNB, nos últimos anos tem coreografado para outras estruturas, nomeadamente as companhias de dança de Angola e Moçambique. De que modo é que estes trabalhos têm marcado a sua perceção da dança e o seu percurso enquanto coreógrafo?

Se estiver confinado a trabalhar sempre com as mesmas pessoas vou ter a tendência de afunilar as minhas ideias. Lá está aquele conforto da forma que é o mote de Tempestades. Trabalhar com pessoas de outros locais, com outras vivências e noutros contextos é extremamente enriquecedor. As pessoas têm resposta física em função da sua latitude e isso tem-me ensinado muito. Quando chego a África não vou com a pretensão de impor uma maneira de estar e de fazer. Em Moçambique, por exemplo, percebi que as pessoas pensam com o corpo, ou seja, o gesto é integralmente uma extensão do pensamento que, incrivelmente, já sai organizado em dança. Nesse sentido, quando me deixo contaminar por estes ambientes, sinto que acrescento mais-valias à minha condição de criador. Se há medo que tenho é o de achar que “já sei”. O que tal implica são riscos que não tenciono correr porque, aquilo que me move, é conseguir reinventar-me, seja como coreógrafo, seja como pessoa.

Como é que avalia o estado da dança em Portugal tendo em conta o seu passado enquanto bailarino da CNB?

Tudo é diferente. Na época em que dancei, a companhia teve um papel importante enquanto museu vivo da dança. Porém, durante anos, fechou-se quase por completo no repertório. Só para se ter uma ideia, ao longo dos quase 20 anos de carreira como bailarino fiz apenas um papel de criação, tudo o resto eram reposições. Hoje, tudo é diferente. Na CNB, por exemplo, tudo se altera com a entrada do Jorge [Salavisa] que abriu portas a novos coreógrafos. Algo que a Luísa continuou e aprofundou, trazendo para a CNB pessoas de todas as áreas. Hoje, Portugal tem um leque de criadores extraordinários, gente com outra visão, com uma formação que lhes dá uma perspetiva mais ampla da dança. E a minha geração também está a aprender com eles.

Ainda sente vontade de dançar?

No estúdio ainda me perco um pouco, mas subir a um palco não. Confesso que não dei conta de ter deixado de dançar, porque um dos meus maiores prazeres é transmitir com o meu movimento aquilo que estou a sentir. E ver o movimento nascer no corpo de outra pessoa é algo que me dá uma enorme adrenalina. Tal qual como quando os meus bailarinos sobem ao palco para fazerem o espetáculo.