entrevista
Tiago Rodrigues
"Interessa-me procurar mecanismos para contar histórias em palco"

A partir de Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Tiago Rodrigues e o coletivo Mundo Perfeito levam ao palco a sua visão de um dos romances maiores da literatura ocidental, propondo, ao mesmo tempo, a reflexão sobre o confronto entre arte e Estado. Para tal, o ponto de partida é o julgamento que o escritor francês enfrentou pouco depois do lançamento da obra, acusada de obscenidade em 1857. O encenador e dramaturgo fala-nos de Bovary, espetáculo em estreia no São Luiz, dia 7 de junho, no âmbito do Alkantara Festival.
Uma vez que o julgamento de Flaubert é ponto de partida para este espetáculo, pode presumir-se que Bovary seja muito mais do que a adaptação do romance?
Para ser rigoroso, diria que Bovary é também uma adaptação do romance. Interessou-me pegar no julgamento de Flaubert, sob acusação de atentado à moral, como partida para esta adaptação. Como tal, parti da relação íntima que cada um de nós estabelece com um grande romance, como é Madame Bovary, fazendo-a acontecer paralelamente com o material histórico provindo do julgamento. Ao invés do encontro estrito com o romance, interessa confrontar essa mesma obra de arte com a sociedade, a lei e o Estado, à procura de descobrir como eles se relacionam com uma forma de arte que é simultaneamente crítica e intima. Esta mesma relação é avivada nos dias de hoje, tornando-se um assunto sobre o qual importa refletir.
É, então, através do julgamento que se conta a história?
É curioso constatar que, mais do que o próprio Flaubert, quem estava a ser julgado era a protagonista do romance, Emma Bovary – uma mulher em busca da embriaguez da felicidade, que a procura fora de todas as convenções sociais da época. Durante o julgamento, tanto a acusação como a defesa tratavam as personagens como se fossem pessoas reais, culpadas ou inocentes. Daí, o romance ir sendo constantemente citado, através das palavras e dos atos dessas mesmas personagens, como uma maneira de contar a história a partir do ponto de vista dos advogados de acusação e defesa. É, já em si, um debate dramatúrgico.
A tua admiração pelo romance foi determinante para o adaptar ao teatro ou pesou igualmente o facto de ter existido um processo legal contra ele?
A genialidade de Flaubert é ser lido hoje com a mesma intensidade e intimidade com que era há 150 anos. É muito estimulante lidar com uma obra de arte genial e preciosa na forma como usa a palavra e, ao mesmo tempo, abordarmos aquele processo que levanta questões prementes. Mas, se há algo que se sobrepõe a tudo é o mistério e “a inquietação injustificada”, para citar o romance, da personagem Emma. Esse é o verdadeiro motor da nossa adaptação.
Como é que este projeto nasceu e se desenvolveu?
Como em todos os meus projetos, o primeiro passo é descobrir o vocabulário que vou desenvolver. Bovary começou com uma conversa com a Carla Maciel, que pretendia fazer qualquer coisa em torno desta personagem. Como gostávamos tanto do romance, desafiámo-nos mutuamente. Depois, encontrámos cúmplices (o Pedro Gil, o Gonçalo Waddington e a Isabel Abreu). Formada essa família de atores, sem pensar ainda em papéis, preocupou-me o conceito de adaptação – iríamos deixar inspirar-nos pelo romance? Iríamos ser-lhe fiéis? Ou, quem sabe, iríamos subverte-lo? Até que surgem as atas do julgamento, e percebemos que seria aí que iríamos encontrar o mecanismo pretendido para o espetáculo.
Como é que descobriste essas atas do julgamento?
Apesar de haver alguma literatura sobre o caso, e ai ter começado por me basear, por mero acaso encontrei uma versão integral do julgamento em língua portuguesa. Foi quando estava a preparar o By Heart [espetáculo apresentado por ocasião dos 10 anos do Mundo Perfeito], e onde atuo com caixotes cheios de livros que tinham pertencido à minha avó. Num deles descubro uma edição de Madame Bovary dos anos 60, com o julgamento integral em apêndice.
Para quem desconhece a história do julgamento, qual foi o veredito?
Flaubert é absolvido, mas o julgamento serve como aviso. Assim, apenas uns meses depois, o mesmo advogado de acusação consegue condenar Charles Baudelaire pela obra As Flores do Mal, entretanto proibida. É curioso constatar como a França daquela época parecia esquecer os valores da revolução e assumia uma tendência conservadora, marcadamente instituída pela “boa moral cristã”.

Por falar nessa tendência conservadora, podemos considerar que Bovary surge na continuidade de um projeto como Três dedos abaixo do joelho, concebido a partir dos textos dramatúrgicos censurados pela ditadura portuguesa?
Podemos considerar que sim, mas não é um espetáculo semelhante. Acho que no meu percurso há questões que se repetem, há uma preocupação latente em relacionar-me com temas sociais e políticos. Se por um lado me interessa procurar mecanismos para contar histórias em palco, por outro não alimento um teatro de ilusão. O espetáculo tem de estar em aberto para o público criar, se assim o entender, as suas próprias ilusões. Em muitos dos meus trabalhos, parto de documentos reais que digerimos e manipulamos descaradamente para inventar um espetáculo. Não me interessa o rigor de um teatro documental que imite a realidade. O meu teatro é da ficção e da imaginação. Porém, quero que ele se relacione com o mundo…
Como um teatro de intervenção?
Não no sentido de intervir politicamente. No teatro que faço, e com as pessoas com que o faço, procuro uma expressão pública da minha intimidade. É no encontro entre a intimidade e o espaço público que se opera aquilo que podemos considerar intervenção. O mais político que creio existir nos meus espetáculos é assumir que quando nos expressamos surge uma relação direta com a política. No fundo, a minha intimidade (e a de todos nós) tem uma relação com a vida pública.
Este espetáculo encerra o Alkantara Festival , que pode muito bem ser o último devido aos cortes de financiamento na área da cultura. Sentes ser uma responsabilidade acrescida?
Sinto que é uma honra, mas também uma tragédia se assim for. O Alkantara é um festival de dimensão europeia que significou, ao longo dos anos, um enorme investimento em novos artistas e criadores. Faz parte de Lisboa, parte do país, e não pode ser visto como um custo. É lamentável que se condene um projeto desta importância à mera sobrevivência, por isso respeito a decisão de quem o dirige de acabar, caso se mantenham os atuais quadros de financiamento.