Ricardo Neves-Neves

"Até Mary Poppins já viveu melhores dias, e agora até tem de se sujeitar a entrevistas de emprego"

Ricardo Neves-Neves

Sempre que o vento muda, Mary Poppins parte em busca de uma nova família. Desta vez, a preceptora mais famosa do universo Disney, voa para o Teatro da Politécnica, depois de ter andado por Barcelona, Queluz, Amadora e Cascais. Ao que consta, chega preparada para prometer melhores dias nestes tempos estranhos… Quem o garante é o autor e encenador Ricardo Neves-Neves que, sem pronunciar por uma única vez a palavra mágica “supercalifragilisticexpialidoso”, falou à Agenda Cultural de Lisboa sobre Mary Poppins - A Mulher que Salvou o Mundo, a sua visão para adultos do conto de fadas.

Como é que Mary Poppins se prepara para salvar o mundo?

Na verdade, Mary Poppins não salva nada! [risos] Tudo parte das promessas de um futuro brilhante e maravilhoso que ela vem anunciar. Ela promete um mundo radioso que as outras personagens vão rejeitar, provavelmente, porque já não acreditam em nada. Esse é o lado político que parece estar presente na peça, estabelecendo um paralelismo entre esta Mary Poppins e aqueles que tudo prometem. Há uma personagem na peça que diz “somos novos demais para ter já um futuro tão viçoso”, e isso sublinha aquilo que nós, sobretudo os jovens, estamos a viver quando nos dizem que temos de passar um mau bocado para merecer dias melhores.

Mas, apesar de já não ser possível acreditar em promessas, as coisas ainda correm bem a Mary Poppins. Ou não?

A peça começa com um monólogo que corresponde à apresentação dela para conseguir um novo emprego. Na verdade, acho que também ela já viveu melhores dias, e agora até tem de se sujeitar a entrevistas de emprego…

Porquê Mary Poppins?

Porque foi dos filmes que mais vi na infância. Lembro que o tinha gravado numa cassete VHS e o revia vezes sem conta. Devia ter uns quatro anos quando o vi pela primeira vez, portanto, nem sequer sabia ler. Curioso é que, quando aprendi a ler e o voltei a ver, fiquei com a sensação de que o entendia desde sempre.

Como é que nasceu a peça?

Foi graças ao [Jorge] Silva Melo. Na altura estava a fazer A Morte de Danton, de Buchner, com os Artistas Unidos, e ele falou-me de um encontro de jovens dramaturgos, promovido pela Sala Beckett, em Barcelona. Vi como poderia inscrever-me e enviei o currículo. Para participar era necessário apresentar um texto dramatúrgico inédito, para um espetáculo de cerca de 20 minutos. O tema era A Era dos Desejos

E como é que ligaste essa “era dos desejos” a Mary Poppins?

A minha visão da Mary Poppins é a de uma fada-madrinha sem varinha, logo associei a personagem a alguém que realiza desejos. Como estava com uma enorme dificuldade em iniciar o texto, lembrei-me de um monólogo que tinha escrito em 2010 e adaptei-o à “voz” da Mary Poppins. Depois, decidi coloca-la junto de uma nova família, que não se inspira na do filme, nem sequer diretamente numa família portuguesa. Digamos que o que se passa nesta peça poderia acontecer hoje, em qualquer lugar do mundo.

O espetáculo acabou por ser feito em Barcelona, mas também nalgumas cidades dos arredores de Lisboa. Como é que o público tem reagido a esta versão de Mary Poppins?

A minha Mary Poppins é muito latina, muito mais descontraída e histriónica do que aquela personagem tipicamente britânica do filme. Por isso, alguma estranheza acaba por se refletir no público, e surpreendê-lo. Em Barcelona, como a peça foi representada em catalão e inglês, a musicalidade que tentei imprimir ao texto ficou algo comprometida e, talvez, a sensação de estranheza que passou para quem a viu lá tenha sido devida a isso mesmo.

Como é que o ator Ricardo Neves-Neves se transformou em dramaturgo?

Foi ainda no Conservatório que comecei a escrever, mas sem a pretensão de fazer da dramaturgia a minha profissão. Aquilo que queria era ser ator. Um dia, umas notas que tomei acabaram por se transformar numa peça que dei a uns colegas para ler. E, às tantas, como a tinha escrito, acabei por encená-la. Começou por chamar-se O Regresso de Cassandra, mas achei mau e mudei para O Regresso de Natacha… confesso que não entendo aonde é que vi as melhoras [risos]. Por incrível que pareça, essa peça, que escrevi em 2005, continua a ser muito solicitada e ainda há pouco tempo foi representada, apesar de, confesso, sentir por ela algum desconforto.

Para além de teres trabalhado com grupos como os Primeiros Sintomas, és fundador do Teatro do Eléctrico, onde tens desenvolvido a maior parte do teu trabalho enquanto dramaturgo e encenador. Como é que nasceu esse projeto?

Poucos meses depois de acabar o Conservatório, em 2006, reuni colegas e começámos a trabalhar juntos, apesar de, oficialmente, o Teatro do Eléctrico ter sido fundado dois anos depois. Foi, também, a resposta que encontrei para poder continuar a trabalhar com os meus colegas de turma e, assim, desenvolvermos um projeto que considero dotado de muita seriedade e empenhamento. Acima de tudo, o Teatro do Eléctrico dá-nos prazer. E isso, por vezes, é muito mais importante do que um eventual retorno financeiro.