O delicioso elogio das superficialidades

‘A Batalha de Não Sei Quê’ de Ricardo Neves-Neves

O delicioso elogio das superficialidades

Depois dos sucessos de O Solene Resgate e Mary Poppins – A mulher que salvou o mundo, Ricardo  Neves-Neves volta a encenar um texto original e a confirmar aquilo que era já uma certeza: o ator e encenador é um dos mais originais autores do teatro português da atualidade. A Batalha de Não Sei Quê, com estreia agendada para o Teatro da Politécnica a 13 de maio, dissipa quaisquer dúvidas – como se ainda as houvesse!

Acontece um ataque e toca a campainha. O Tenente manda prontamente o jovem Rádio à porta. No regresso, uma mensagem do inimigo: “É para saber se a Batalha pode ser por volta das cinco da tarde, Sr. Tenente”. O Aviador desabafa: “Ó porra, à hora do lanche não.”

Este hilariante excerto de uma das cenas iniciais de A Batalha de Não Sei Quê (a lembrar muito a rábula da “guerra” que Raul Solnado imortalizou) conta muito daquilo que motivou Ricardo Neves-Neves a escrever uma comédia que tivesse como pano de fundo a guerra, tema a que, confessa, chegou por mera casualidade.

“Tinha sido desafiado pelo Jorge Silva Melo a escrever uma peça para estrear este ano no espaço dos Artistas Unidos, mas estava sem ideias. Por altura do Natal, em férias, sentado à frente do televisor, percebi que as guerras estavam como nunca, desde que me lembro, na ordem do dia: a Ucrânia, os conflitos em África, os ataques do Estado Islâmico…”, refere.

A quente, numa troca de mensagens com Silva Melo, Neves-Neves anunciou: “Jorge, decidi escrever uma peça sobre uma batalha, mas não sei qual…” Assim nasceu a ideia para um espetáculo sobre “uma guerra de vizinhos”, passada precisamente num quintal. Porque, explica o autor, “não me interessava propriamente apontar o dedo à realidade que aparece na televisão, mas sim falar acerca de absolutamente nada a partir de coisas que existem, de facto, nas nossas vidas.”

Uma marca do teatro de Neves-Neves que, como o próprio refere, “procura o prazer de molhar o pão quando não há molho”, com o toque quase infantil de brincar, como se o teatro pudesse abraçar a banda desenhada, conciliando o inverosímel e o absurso.

“Não me interessava propriamente apontar o dedo à realidade que aparece na televisão, mas sim falar acerca de absolutamente nada a partir de coisas que existem, de facto, nas nossas vidas.”

 

Apesar da peça ser trespassada por um medo real, quase palpável, e o impulso do combate ir dominando os personagens ao longo do tempo, A Batalha de Não Sei Quê é uma comédia onde, à semelhança de outras peças do autor, se elogiam as frivolidades do quotidiano, como os momentos de prazer que se retiram de uma sesta numa tarde quente de verão ou de um piquenique no jardim. Aliás, voltando à cena em que se anuncia a hora da batalha para as cinco da tarde, o lanche pode ser uma dessas doces frivolidades do quotidiano, posta naturalmente em causa quando algo menos normal se introduz no curso dos dias.

“O superficial também é importante e faz parte das nossas vidas. A guerra, tal como a crise económica que vivemos, perturba os pequenos hábitos do quotidiano, retira-nos os grandes e os pequenos prazeres e, acima de tudo, a liberdade. Nesta peça, mais do que falar sobre a guerra, quis sublinhar a importâncias das pequenas coisas que nos fazem bem”, acrescenta.

A Batalha de Não Sei Quê é, assim, um delicioso elogio das superficialidades que acontecem naturalmente nas nossas vidas. Uma brincadeira que, por sinal, até vai acabar em tragédia, ou não fosse o mundo um sítio cada vez mais perigoso, e os prazeres da vida tenderem a tornar-se cada vez mais escassos.

O espetáculo, em cena até 11 de junho, conta com as interpretações de Américo Silva (o Tenente), Andreia Bento (a Freira), José Leite (o Rádio), Vânia Rodrigues (a Espanhola) e o próprio Ricardo Neves-Neves (o Aviador).