Essencial Rossellini

O neorealista de inspiração cristã

Essencial Rossellini

Depois dos sucessos dos programas dedicados a Ingmar Bergman e a Satyajit Ray, o Espaço Nimas exibe nove obras essenciais do cineasta italiano Roberto Rossellini. Até final de abril, em versões digitais e restauradas, passam obras-primas como Roma Cidade Aberta (1945), Paisà – Libertação (1946) ou Viagem em Itália (1954). Em complemento, o documentário A Força e a Razão (1972), de Emidio Greco, que acompanha uma entrevista de Rossellini ao presidente chileno Salvador Allende.

As primeiras impressões de Ingrid Bergman sobre dois filmes de Roberto Rossellini (8 de junho de 1906 – 3 de junho de 1977), Roma Cidade Aberta e Paisà, que viu em salas de arte e ensaio nos Estados Unidos em finais dos anos 40, fazem uma sumula da marca do realizador italiano na história do cinema. “Ninguém parecia um ator e ninguém falava como um ator. Havia escuridão e sombras e às vezes não se ouvia nem mesmo se via. Mas a vida é assim: nem sempre vemos e ouvimos, mas sabemos, quase para lá do que é inteligível, que algo está a acontecer”, confessava a popular atriz nas suas memórias.

O fundador dos Cahiers, André Bazin, colocava Rossellini, “o neorrealista de inspiração cristã”, na restrita moldura dos cineastas que “inventaram o cinema moderno”, ao lado de Orson Welles e Jean Renoir. O realizador norte-americano Martin Scorsese, acérrimo divulgador dos grandes mestres do cinema italiano, aponta-o como o cineasta que captou “a verdade do que é ser-se humano” e os seus filmes como “o ‘lugar’ onde sempre volto para me inspirar”. A importância da obra de Rossellini acaba por estar descrita nas suas próprias palavras: “o cinema é para mim o empenho de um homem que vive em sociedade”.

Nascido no seio de uma família burguesa de Roma, Roberto Rossellini assina os seus primeiros filmes entre 1941 e 1943, em pleno fascismo. Com o fim da guerra, surge o filme que consagra definitivamente o neorrealismo e coloca em causa a dramaturgia clássica no cinema: Roma Cidade Aberta. Escrito em parceria com Sergio Amidei e Federico Fellini, o filme é praticamente rodado em cima dos acontecimentos, numa estética muito próxima do documentário, recusando efeitos e filmado em cenários naturais, quase como um filme de atualidades. Apesar de parte do elenco ser constituído por não-profissionais (uma das características do cinema neorrealista), Rossellini contou no elenco com dois atores muito populares à época: Anna Magnani e Aldo Fabrizi.

O segundo filme da consagração de Rossellini é Paisà – Libertação. Composto por seis episódios que narram a luta pela sobrevivência de pessoas simples durante a guerra, esta nova obra-prima retrata “os homens e as coisas tais como elas são”. De certo modo, algum do pendor narrativo do melodrama que percorria Roma Cidade Aberta perde-se, e o filme leva o conceito de “autenticidade”, conforme refere Scorsese, a um patamar ainda mais elevado. Sem que o espetador dê conta, muitos dos planos de transição ao longo do filme são excertos dos jornais de atualidades da época que vão sendo intercalados com as sequências encenadas.

A “trilogia da guerra” de Rossellini fecha-se em 1948 com Alemanha Ano Zero. Alvo da incompreensão por parte do público e da crítica, o filme retrata o quotidiano de um rapaz em Berlim que, incitado por um antigo professor, assassina o pai doente. Numa espécie de purgação sobre as sementes do nazismo, o filme é um retrato tremendo da capital alemã do pós-guerra. Marlene Dietrich, com quem Rossellini conviveu numa estada em Paris, terá sido conselheira do realizador, partilhando muitas das experiências vividas quando entrou em Berlim, ao lado dos Aliados, em 1945.

Rossellini com Ingrid Bergman durante a rodagem de ‘Viagem em Itália’ (1954)

 

Bergman e a trilogia do sentimento

Uma das características mais reconhecidas a Rossellini era a coerência em relação à sua arte. Depois da má receção a Alemanha Ano Zero e O Amor, tudo parecia apontar numa ida do realizador para a “meca do cinema”, Hollywood. Apesar das portas que se abriam, Rossellini não transigiu e manteve-se fiel a si mesmo e à Itália natal que parecia não o compreender. Entretanto, um dos símbolos maiores do cinema americano, a atriz sueca Ingrid Bergman, preparava-se para ir ao seu encontro, iniciando-se assim uma das mais famosas relações do mundo da sétima arte.

Em 1948, Bergman revelava, em carta endereçada a Rossellini, a sua vontade em ser dirigida pelo já muito aclamado cineasta. Rossellini deixou-se tentar e, um ano depois, partia para Hollywood a fim de acertar um acordo com a estrela e arranjar financiamento para um novo filme. Consta que o produtor Samuel Goldwin recebeu o realizador e terá estado perto de financiar o projeto. Porém, percebeu que se tratava de “uma loucura” quando Rossellini lhe explicou que dirigia sem argumento, que um mapa de trabalho iria depender das condições para rodagem na pequena ilha siciliana de Stromboli e que, à excepção de Ingrid Bergman, não tencionava ter qualquer outro ator profissional.

Stromboli, filme admirável  de 1950, acabaria financiado pela RKO e daria a Bergman um dos papéis da sua vida. A história de uma prisioneira de guerra do norte da Europa que aceita casar com um pescador siciliano para fugir a um campo de refugiados, inaugura aquela que ficou conhecida como a “trilogia do sentimento”, juntamente com Europa 51 e Viagem em Itália. Estas três obras maiores têm em comum o olhar “autêntico” de Rossellini sobre um mundo pacificado, mas apenas na aparência. Ao mesmo tempo são os três filmes mais emblemáticos do realizador com Bergman, com quem está casado de 1950 a 1955.

Para além destas seis obras essenciais, esta programação compreende ainda O Amor (1948), outro dos grandes filmes de Rossellini, constituído por duas histórias – A Voz Humana, a partir de Jean Cocteau, e O Milagre, escrito por Federico Fellini –, ambas protagonizadas por uma enorme Anna Magnani; A Máquina de Matar Pessoas Más (1952); O Medo (1954), adaptação do romance de Stefan Zweig e o último filme de Rossellini com Ingrid Bergman; e India (1958), uma viagem ao fascinante mundo daquele país asiático, entre o documentário e a ficção.

Fora desta programação estão algumas obras marcadamente “espirituais” dos anos 50; as que assinou sobre a história de Itália, e que marcam o período pós-Bergman e a experiência indiana; bem como as chamadas “obras didáticas”, e bastante controversas, que dirigiu para a televisão.