Entre o popular e o erudito

‘À espera de Beckett ou Quaquaquaqua’ no Teatro da Trindade

Entre o popular e o erudito

A partir de episódios das três montagens de À Espera de Godot, de Samuel Beckett, por Ribeirinho, Jorge Louraço propõe uma reflexão sobre a difícil relação entre a cultura popular e a cultura erudita. À espera de Beckett ou Quaquaquaqua estreia, a 30 de novembro, no Teatro da Trindade que perfaz, nesse mesmo dia, 150 anos de existência.

Não terá sido mera coincidência, mas foi certamente uma escolha feliz surgir em cena, no período de comemoração do 150.º aniversário do Teatro da Trindade, uma peça que tem como protagonista essa figura maior do teatro português de seu nome Francisco Ribeiro (1911-1984), e imortalizada na memória dos portugueses como Ribeirinho.  Em 1959, o ator que o cinema imortalizou em O Pai Tirano, dirigiu, no Trindade, e pela primeira vez em Portugal, a peça de Samuel Beckett À Espera de Godot. Alguns anos depois, Ribeirinho voltaria ao controverso e influente texto do autor irlandês: no final dos anos de 1960, novamente no Trindade, e pouco antes da Revolução de Abril, com uma companhia itinerante, em Angola.

Estes três momentos da história serviram Jorge Louraço na construção de uma comédia que traça um paralelo subtil com o texto de Beckett. Ao invés de Godot, encontramos Francisco Ribeiro, outros dois atores e um ponto, à espera de Beckett que, supostamente, deveria assistir a uma récita do espetáculo. Ora, o autor, tal como Godot, nunca aparece e entre os ensaios vai-se gerando um misto de tensão e de desânimo.

Perante situações a roçar o absurdo, que Louraço assume serem como que uma “entrada na cabeça de Ribeirinho”, o espetáculo vai cruzando Godot com alguns momentos dos famosos filmes portugueses dos anos de 1940, nomeadamente O Pai Tirano e O Pátio das Cantigas, estabelecendo uma reflexão sobre as divisões criadas entre o popular e o erudito. O autor e encenador de À espera de Beckettpretende “enfrentar de frente” esta “frágil divisão”, onde a pateada do público convive lado a lado com o aplauso de uma certa elite bem-pensante. E, socorre-se daquela ideia de que À espera de Godot é composto das memórias de Beckett do music hall irlandês, tal como as históricas encenações de Godot por Ribeirinho são imbuídas da sua passagem pelo cinema popular ou pelo teatro de revista.

Por isso, Jorge Louraço vê neste seu espetáculo uma tomada de posição contra a elitização da cultura, particularmente do teatro, usando uma figura tão importante no teatro português como foi Ribeirinho para o expor. Até porque se Beckett revolucionou a linguagem do teatro, Francisco Ribeiro mudou o teatro em Portugal (e não foi apenas por ter encenado Beckett quando ninguém o fazia).

À espera de Godot ou Quaquaquaqua conta com interpretações de Estêvão Antunes, Mário Moutinho, Óscar Silva e Pedro Diogo, no papel de Ribeirinho. O espetáculo está em cena, na sala estúdio do Teatro da Trindade, até 17 de dezembro.